Três lições de um rei sábio que somente na velhice aprendeu a valorizar a vida
Todos nós queremos curtir a vida e ser felizes, não é mesmo? Gostamos de viajar, experimentar novos sabores, conhecer pessoas diferentes e desfrutar dos diversos prazeres que a breve existência humana proporciona.
Diferentemente do que muita gente acredita, a Bíblia não é contrária a nada disso. Deus criou os seres humanos para apreciar a vida e as inúmeras possibilidades que ela oferece. É óbvio que, após a queda moral do ser humano e a entrada do pecado neste mundo, essa realidade sofreu muitas alterações.
A existência perfeita e harmônica se tornou imperfeita e injusta; deixou de proporcionar exclusivamente felicidade e bem-estar para produzir medo e angústia. A eternidade foi substituída pela fugacidade (ver Ec 9:9). É por isso que o rei Davi, no Salmo 144:4, comparou nossa vida ao sopro e à sombra que passa.
Salomão, o maior bon vivant das Escrituras, entendeu bem essa mensagem. É verdade que ele cometeu muitos erros (cf. 1Rs 11:1-11) e levou algum tempo para se tornar realmente sábio aos olhos de Deus. À semelhança de nós hoje, o rei dissipador tentou encontrar a felicidade nas conquistas pessoais (Ec 2:4-7), nos relacionamentos (v. 8) e na realização de todos os seus desejos (v. 3, 10).
Depois de Salomão mencionar seus grandes feitos e sua busca hedonista pelo prazer, concluiu: “E eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento, e nenhum proveito havia debaixo do sol” (Ec 2:11). Nesse verso, ele resumiu o conceito de fugacidade existencial na palavra “vaidade”. O trocadilho é evidente, considerando o fato de que o termo hebraico hevel, traduzido como “vaidade”, significa literalmente “sopro”, “vapor”. Tudo é vaidade porque tudo é transitório, uma concepção materializada na breve e angustiante existência de Abel, cujo nome hebraico também é hevel (ver Gn 4:1-11).
Em Eclesiastes 9:1 a 6, a ideia da brevidade da vida é reforçada diante do destino inevitável de todos os seres humanos: a morte. O teólogo Jacques Doukhan, no livro Todo Es Vanidad (Aces, 2006), na página 93, sintetizou muito bem essa passagem: “A perspectiva de Eclesiastes é universal. […] ‘Todas’ as categorias humanas são consideradas: o justo e o ímpio, o puro e o impuro, a pessoa religiosa e a secular, o bom e o pecador, o que jura e o que teme fazê-lo (9:2). Todos temos a mesma sorte: não sabemos para onde vamos; não sabemos o que está diante de nós (9:1); não sabemos quais serão nossos amores e ódios, nossas dores e alegrias. Porém, sabemos de uma coisa com certeza: nós morreremos.”
É por causa dessa realidade que Salomão nos aconselha a desfrutar da vida, pois para os vivos sempre “há esperança” (Ec 9:4). Nos versos 7 a 9, após refletir sobre a existência e o destino de todos os seres humanos (v. 1-3), Salomão nos deixou três conselhos para que aproveitemos a existência. Essas sábias orientações podem ser facilmente identificadas por meio de três verbos na forma imperativa: “vá”, “aproveite” e “faça”.
1º VÁ E APRECIE COM MODERAÇÃO
O primeiro conselho de Salomão inicia-se com o imperativo “vá”, do hebraico lekh. Essa expressão nos lembra da ordenança divina dada ao patriarca Abraão para “sair” (heb. lekh-lekha) de sua terra e do convívio de sua família (Gn 12:1). Em outras palavras, trata-se de um convite à ação. É necessário deixar a zona de conforto para “ir” e apreciar os presentes de Deus para nós.
Existem, porém, algumas diferenças entre o chamado de Abraão e a ordem de Eclesiastes 9:7. O primeiro envolveu sacrífico, fé e resignação; enquanto o segundo é um convite generoso para apreciar o “pão” e o “vinho”. Esses alimentos, junto ao “óleo” ou “azeite” mencionado no verso 8, que poderia servir como perfume e remédio mas também como comida, compunham a dieta básica do povo de Israel em Canaã (ver Sl 104:14, 15).
É importante destacar que Salomão não recomendou a bebida alcoólica em Eclesiastes 9:7. O próprio rei condenou esse tipo de bebida em Provérbios 20:1 e 23:30 a 32. Essa confusão acontece porque o termo hebraico yayin, traduzido como vinho, é ambíguo e pode se referir tanto à bebida fermentada quanto ao suco de uva recém-preparado, mais conhecido como mosto.
Nesse caso, uma expressão análoga pode ajudar a esclarecer essa confusão. Vários textos do Antigo Testamento, como 2 Reis 18:32, empregam as palavras “cereal” e “vinho” como um sinônimo de “pão” e “vinho”. O detalhe de 2 Reis 18:32 é que, além de a palavra “cereal” estar em paralelo com “pão”, o termo hebraico para vinho é tirosh, que significa literalmente “mosto”. À luz desse paralelismo, podemos inferir que Eclesiastes 9:7 se refere ao vinho novo, o suco da uva, e não ao vinho velho já fermentado.
Tudo isso nos mostra que Deus não apenas permite que desfrutemos dos produtos da terra, mas que Ele “Se agrada” de nós quando agimos assim (v. 7). O verbo “agradar”, do hebraico ratsah, geralmente é usado na Bíblia para se referir às ofertas “aceitas” por Deus (ver Lv 1:4; 7:18; etc.). Em Eclesiastes 9:7, contudo, nós é que devemos “aceitar” os presentes que o Senhor nos oferece.
Honramos a Deus quando comemos o pão com alegria e bebemos o vinho com prazer (ver Ec 2:24; 3:13; 5:18-20). Gratidão e reconhecimento são os conceitos-chave aqui. Não é bíblica a ideia de que a religião deve ser rigorosa, apenas contemplativa e de que as pessoas não podem comer nem se alegrar.
Eclesiastes 9:8 deixa isso ainda mais claro ao afirmar que devemos ter as vestes sempre brancas e nunca deixar faltar o óleo sobre a nossa cabeça. As “vestes brancas” e o “óleo” formam uma imagem de um banquete festivo (Sl 23:5; Ap 3:4, 5; 19:7-9; ver Et 8:15-17). A verdade é que Deus gosta de festas! (ver Lv 23:4-44; Dt 14:24-29; Ne 8:10; Mt 22:1-14; 26:26-29; Lc 14:15-24; etc.).
Jesus ilustrou muito bem o conceito apresentado em Eclesiastes 9:7 e 8. Seu primeiro milagre foi multiplicar o vinho em uma festa de casamento. Ele também multiplicou o pão para alimentar multidões em duas circunstâncias. Alguns críticos chegaram até mesmo a chamá-Lo de “glutão e bebedor de vinho”, por comer e beber com os pecadores (Mt 11:19). Além disso, o Mestre incentivou Seus discípulos a ungir a cabeça, a fim de não agirem como os religiosos da época que desfiguravam o rosto para aparentar piedade e religiosidade (Mt 6:16, 17).
Portanto, a primeira dica de Salomão para curtir a vida, conforme exemplificado por Jesus, é ter atitude e apreciar com moderação e sabedoria as bênçãos materiais que Deus nos dá.
2º CURTA A VIDA COM QUEM VOCÊ AMA
O segundo conselho de Salomão começa com o imperativo “aproveite”, do hebraico ra’ah. O curioso desse verbo é que o significado básico de sua raiz é “ver”. Salomão nos incentiva a “contemplar” a vida com a pessoa que amamos, isto é, com aquela que decidimos nos unir por meio de uma aliança eterna.
Podemos dizer que Salomão entendia algo sobre esse assunto. De acordo com 1 Reis 11:3, ele havia se casado com aproximadamente mil mulheres! No entanto, embora tivesse se unido matrimonialmente a 700 princesas e 300 concubinas, seu coração parecia pertencer a uma mulher chamada Sulamita, a respeito de quem ele escreveu no livro bíblico de Cântico dos Cânticos.
O próprio rei confessou que, no período mais sombrio da vida, havia procurado encontrar a felicidade nas “delícias dos filhos dos homens: mulheres e mais mulheres” (Ec 2:8). A exemplo de Salomão, muitos hoje trilham o mesmo caminho promíscuo de destruição. A essas pessoas, o experiente monarca adverte: “Achei coisa mais amarga do que a morte: a mulher cujo coração é rede e armadilha e cujas mãos são correntes. Quem agrada a Deus fugirá dela, mas o pecador virá a ser seu prisioneiro” (Ec 7:26).
A dica do sábio poeta é: “Alegre-se com a mulher da sua mocidade. […] Que os seios dela saciem você em todo o tempo; embriague-se sempre com as suas carícias” (Pv 5:18, 19). Como se pode ver, a Bíblia não é contra o prazer sexual, desde que seja vivenciado no contexto seguro e íntimo do casamento.
A expressão pura da sexualidade humana também é um dos presentes de Deus para nossa felicidade. O amor compartilhado é uma das “porções” ou “recompensas” que o Senhor nos oferece para que suportemos a angústia e a fadiga que experimentamos “debaixo do sol” (Ec 9:9; ver 3:22; 5:18, 19).
Jacques Doukhan fez o seguinte comentário sobre Eclesiastes 9:9: “Este é um convite para abrir nossos olhos e reconhecer o valor e a beleza que existe nesse verso, como sugere a tradução literal: ‘veja a vida’. A vida está aqui, contudo, não a vemos. Nossos olhos podem estar em outro lugar. Isso significa estar atento ao que nos é dado, em vez de olhar para outros horizontes; implica gratidão e fidelidade, a condição fundamental para a felicidade no casamento” (Todo Es Vanidad, p. 98).
Em resumo, podemos afirmar que a segunda dica de Salomão para curtir a vida é compartilhá-la com quem amamos. Nem tudo na vida precisa de test drive! O melhor é se preservar até encontrar a pessoa certa, no momento adequado. Quem seguir esse conselho poderá “ver” a vida com outros olhos!
3º FAÇA TUDO CONFORME SUA CAPACIDADE
O terceiro e último conselho de Salomão é marcado pelo imperativo “faça”. Em Eclesiastes 9:10 encontramos a orientação para fazer, conforme nossas forças, tudo o que vier à nossa mão. A justificativa do texto é que, na sepultura (heb. she’ol), “não há obra, nem projetos, nem conhecimento, nem sabedoria alguma”.
A expressão “conforme as suas forças”, do hebraico bekhochakha, significa “conforme as suas habilidades”. Como destacou Michael Fox, no livro Ecclesiastes (Jewish Publication Society, 2004), na página 64, Salomão não ensinou que precisamos empregar toda a nossa energia naquilo que fazemos. Isso seria ‘amal, o trabalho que nos causa fadiga debaixo do sol (Ec 9:9; comparar com 1:3; 2:10, 11; 2:18-22; 3:9; 4:6-8; 5:18; 8:15; etc.).
Salomão nos diz que devemos trabalhar conforme as nossas forças (Ec 9:10), nem mais nem menos! Ele defende o trabalho moderado. Mais do que isso é vaidade e correr atrás do vento; menos do que isso é preguiça e passividade. Assim, cabe a nós buscar esse equilíbrio. Não há justificativa para trabalhar ou estudar excessivamente nem para ser descomprometido com os próprios deveres.
A linguagem de Eclesiastes 9:10 faz alusão a Gênesis 2:1 a 3 e Êxodo 20:9 a 11, na medida em que são usadas as palavras “todo” (heb. kol) e “fazer” (heb. ‘asah). O texto de Êxodo 20:9 a 11, por exemplo, prescreve: “Seis dias você trabalhará e fará toda a sua obra, mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao Senhor, seu Deus. Não faça nenhum trabalho nesse dia. […] Porque em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou” (itálico acrescentado).
A relação entre Eclesiastes 9:10 e o mandamento do sábado nos ajuda a desenvolver uma visão correta acerca do trabalho. É um lembrete de que devemos “fazer tudo” com diligência sem perder de vista o “descanso”. Segundo Doukhan, “as lições dessa conexão […] são múltiplas. Em primeiro lugar, o trabalho é uma expressão humana da imagem divina. Criamos a semelhança de como Ele criou. A partir dessa perspectiva, o trabalho corresponde ao domínio sagrado. É interessante notar o fato de que a palavra hebraica para ‘trabalho’, ‘avodah, também significa ‘adorar’. O trabalho, então, deve ser realizado com a mesma concepção de sagrado que temos para com um culto de adoração. […] Ao mesmo tempo, o trabalho deveria ficar dentro das proporções humanas; na proporção de nossas ‘forças’. O trabalho nunca deveria nos esmagar; ele está em nossa ‘mão’” (Todo Es Vanidad, p. 99).
Logo, a terceira dica de Salomão para curtir a vida é fazer tudo que vier à nossa mão conforme a nossa capacidade. Não trabalhe demais nem de menos! Para desfrutar da existência, o que deixamos de fazer é tão importante quanto o que fazemos.
Pega a ideia!
Depois de apontar o caminho para uma existência mais significativa e feliz por meio dessas três dicas, que na verdade são imperativos, Salomão, ao fim do livro de Eclesiastes, resumiu seus ensinos em apenas um conselho. Então, pega a ideia: “De tudo o que se ouviu, a conclusão é esta: tema a Deus e guarde os Seus mandamentos, porque isto é o dever de cada pessoa. Porque Deus há de trazer a juízo todas as obras, até as que estão escondidas, quer sejam boas, quer sejam más” (Ec 12:13, 14).
ANDRÉ VASCONCELOS é pastor e editor de livros na CPB
(Artigo publicado originalmente na seção Texto e Contexto da revista Conexão 2.0 de abril-junho de 2021)
Última atualização em 5 de setembro de 2022 por Márcio Tonetti.