Como a igreja pode ser mais efetiva no trabalho de alcançar os surdos e atender suas necessidades
Em Levítico 19:14 está escrito: “Não amaldiçoe o surdo, nem ponha tropeço diante do cego, mas tema o seu Deus. Eu sou o Senhor”. Este versículo nos leva a pensar não só no amor incomensurável de Deus, mas também na essência ética dos princípios e leis que o Senhor transmitiu à humanidade. Pelo fato de conhecer o fim desde o princípio, Ele olhou através dos tempos e percebeu a necessidade de orientar o ser humano no que tange ao trato uns com os outros, não se esquecendo de ninguém.
Há quem atribua um sentido figurado aos termos “surdo” e “cego”. Outros não, consideram a pessoa com as respectivas limitações. Prefiro acreditar nesta última, uma vez que a história traz um registro de como as pessoas com deficiência eram tratadas nas mais diversas civilizações, em todas as eras, num misto de compaixão e crueldade atroz.
A ênfase na condição de não-ouvinte da pessoa surda contribui para o surgimento de obstáculos, os quais demandam da incomunicabilidade, o que pode gerar desprezo por parte dos que ouvem, deixando-a alheia ao mundo, desassistida, desamparada. Essa não seria uma forma de amaldiçoar o surdo? A propósito, ao pesquisar no dicionário o significado da palavra amaldiçoar, é possível encontrar sinônimos interessantes, como: renegar, desamparar, abandonar, detestar, odiar, entre outros.
Ao assentar tais premissas num plano de evangelismo, parece que a responsabilidade é dobrada, não só pela quantidade de luz recebida como também pelo uso dos dons e talentos a fim de tornar o evangelho acessível a todas as pessoas. A ordem do Mestre expressa em Mateus 28:19 e 20 não apresenta exceções nem condições. Ele deixa explícito que o evangelho deve ser levado a todas as pessoas, a todas as nações, o que inclui, evidentemente, a pessoa surda.
O Senhor dotou a humanidade de consciência moral e habilidades extraordinárias, as quais podem abarcar todas as pessoas. Portanto, necessita-se empregá-las em Seu serviço. Todos são capazes de atuar na grande obra de salvação. Sendo assim, é importante considerar dois pontos. Primeiro, todo o Céu coopera com aqueles que estão dispostos a trabalhar para o Mestre. Segundo, consequentemente, não há desculpas para a negligência. Isso é confirmado nas palavras da escritora Ellen G. White: “Vi que é pela providência de Deus que viúvas e órfãos, cegos, surdos, coxos e pessoas atribuladas por diversos modos foram postas em íntima relação cristã com sua igreja. Isso é para provar Seu povo e desenvolver-lhe o caráter. Os anjos de Deus estão observando para ver nossa maneira de tratar essas pessoas necessitadas de nossa simpatia, amor e desinteressada generosidade. Essa é a maneira de Deus provar nosso caráter” (Serviço Cristão, p. 191).
O Senhor compreende as dificuldades e está disposto a cooperar com o ser humano. Na obra de evangelização das pessoas surdas, não é diferente. Porém, isso não significa que o envolvimento nessa missão deixe de gerar insegurança, angústia e incerteza ou impeça o surgimento de questionamentos: Como evangelizar os surdos? Para responder tais perguntas e solucionar possíveis problemas que delas demandem, faz-se necessário, antes de qualquer coisa, conhecer o surdo e suas especificidades. É preciso saber quem ele é, como se comunica e qual é a natureza de sua língua. Em suma, tudo o que estiver relacionado aos seus valores culturais e identitários.
QUEM É O SURDO?
O Decreto Federal 5626 de 2005, em seu Art. 2, apresenta a seguinte definição: “Considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais – Libras”. No mesmo decreto, no parágrafo único do Capítulo I, há outra definição que é importante apresentar: “Considera-se deficiência auditiva a perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz”. A partir dessas definições é possível perceber as duas grandes concepções de surdez: uma denominada concepção clínico-patológica e a outra sócio-antropológica.
A primeira trata a pessoa surda como portadora de uma deficiência e necessitada de reabilitação por meio dos mais diversos recursos, como aparelhos de Amplificação Sonora Individual (AASI), implante coclear, método oralista para o desenvolvimento da fala, entre outros. Ainda sobre esta concepção de surdez, é importante destacar que ela não valoriza as línguas de sinais como língua natural e sua indispensabilidade no processo de desenvolvimento do surdo.
Já a segunda concepção compreende o surdo como sujeito cuja língua materna e de instrução é a língua de sinais. Nesse caso, a surdez é vista como uma marca cultural, não uma deficiência. Isso porque as comunidades surdas consideram o termo deficiência como incapacitante, como se o surdo fosse portador de uma patologia que necessita ser tratada ou curada, o que não é de fato assim. Enquanto os ouvintes possuem uma língua e uma cultura oral-auditiva, os surdos se apropriam de conceitos e compartilham as experiências de mundo visualmente, ou seja, constituem uma minoria linguística cuja língua é de natureza visual-espacial.
AS LÍNGUAS DE SINAIS
Não existe uma língua de sinais única, pois cada país possui a sua própria, cujas convenções e manifestações se dão por meio da cultura das diversas comunidades surdas, espalhadas pelo mundo. Logo, expressões do tipo: “A Libras dos Estados Unidos” é empregada erroneamente, pois o referido país tem a sua própria língua de sinais, a ASL (American Sign Language). Já a Libras é exclusivamente do Brasil.
É importante observar que a Libras, bem como a ASL, pertencem a troncos linguísticos diferentes, o que permite perceber diferenças significativas na produção dos sinais, além de outras nuances como a própria forma de sinalizar, tudo muito ligado às questões culturais. A Libras tem sua origem na Língua de Sinais Francesa (Langue des Signes Française – LSF). Mesmo no Brasil, ela sofre variações linguísticas. Há sinais, por exemplo, da região Nordeste ou Centro-Oeste que diferem dos sinais do Sul e Sudeste.
Existem ainda alguns estereótipos em relação às línguas de sinais. Muitos pensam que elas sejam meramente “um conjunto de gestos, mímica e teatralização, incapaz de expressar conceitos abstratos” (Tenho Um Aluno Surdo, e Agora?, p. 27). Outro estereótipo bastante comum é que as línguas de sinais são apenas a versão sinalizada da língua oral. Nesse caso, a Libras seria a língua portuguesa gesticulada. Tais considerações acerca das línguas de sinais surgem devido à falta de conhecimento sobre o assunto. Não se trata, obviamente, de um crime ou violação de algum princípio. Afinal, muitos estudos ainda estão sendo desenvolvidos como forma de estruturar e reforçar o status de língua natural. O que não deveria acontecer é o que podemos chamar de ignorância obstinada, ou seja, negar a si mesmo a oportunidade de conhecer o universo da surdez e das línguas de sinais por algum receio, preconceito, falta de interesse ou qualquer outra razão.
Em relação ao status de língua natural das línguas de sinais é importante destacar que elas possuem as mesmas características das línguas orais, do processo de aquisição à constituição pelos elementos linguísticos, como morfologia, sintaxe, semântica e pragmática. Porém, distinguem-se em sua estruturação, levando em conta sua natureza visual-espacial.
Uma curiosidade sobre as línguas de sinais é que estudos desenvolvidos no Laboratório de Neurociências Cognitivas da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, descobriram que elas são organizadas no hemisfério esquerdo do cérebro, assim como as línguas de modalidade oral-auditiva. No caso dos ouvintes, os movimentos das mãos são processados no hemisfério direito. Isso acontece “justamente porque são entendidos como língua, e não como gesticulação ou movimento corporal aleatório” (Tenho Um Aluno Surdo, e Agora?, p. 29).
Sobre a estrutura da Libras, convêm destacar que ela é organizada em parâmetros, sendo eles:
1. Configurações de Mãos (CM). A forma que a mão ocupa na produção dos sinais. As letras do alfabeto datilológico constituem configurações de mãos. Por exemplo, com a letra Y é possível produzir inúmeros sinais como: “vaca”, “avião”, “idade”, entre outros. É muito comum ouvir por aí que as línguas de sinais são o alfabeto datilológico, o que é um equívoco. Elas transcendem o alfabeto, não se reduzem a ele.
2. Ponto de Articulação (PA) ou Locação (L). O local em que o sinal é produzido, sendo em algum espaço à frente do corpo, neutro ou tocando o corpo. No caso do sinal de “aprender”, a configuração de mão é em S (alfabeto datilológico) e a locação é na testa.
3. Movimento (M). Os sinais podem ou não ter movimento. No sinal de “bicicleta”, por exemplo, cuja configuração de mão é em S (alfabeto datilológico), a locação se dá à frente do corpo sem tocá-lo, em movimento circular bidirecional. Os referidos parâmetros são os primários, ou seja, as unidades mínimas que formam os sinais, porém existem outros dois que são de igual importância, os chamados parâmetros secundários. Consistem em: (1) orientação de mãos (O) e expressões não manuais (E). O primeiro refere-se à direção da palma da mão na produção do sinal. Por exemplo, no sinal de “desculpa”, a configuração de mão é em Y (alfabeto datilológico), a locação, tocando o queixo, em movimento retilíneo curto repetitivo, e a orientação de mãos se dá com a palma voltada para o corpo; (2) expressões da face e do corpo, elementos muito importantes na constituição dos sinais. Enquanto nas línguas orais as expressões faciais são recursos extralinguísticos, nas línguas de sinais, ao contrário, são componentes gramaticais.
MINISTÉRIO DE LIBRAS
A preocupação do cristão envolvido na missão está em evangelizar as pessoas e, a despeito das limitações de cada um, o contato de ouvintes com seus pares ocorre com precisão e previsibilidade, uma vez que se comunicam pela mesma língua. Isso não acontece entre ouvintes e surdos, pois nesse caso há importantes diferenças linguísticas. Logo, é preciso pensar numa forma de tornar o evangelho acessível a eles, o que, a priori, demanda um trabalho de sensibilização, reflexão e formação.
Caso o surdo contatado não saiba Libras, o que é muito comum, os envolvidos na missão, em formação contínua, podem realizar o trabalho de formação desse surdo, ensinando Libras para ele. Existe na igreja o Ministério Adventista de Surdos (MAS), cuja missão é “levar adiante o imperativo do Mestre de pregar o evangelho a todos”.
A partir dessa iniciativa, surgiram projetos muito interessantes com o intuito de cumprir a missão, dentre eles a Missão Calebe para surdos, o Evangelibras (semana de evangelismo virtual) e o Encontro de Amigos Surdos e Intérpretes (EASI), evento cujo objetivo é reunir os amigos surdos e intérpretes para fomentar a cultura surda e a língua de sinais, bem como mostrar o amor de Cristo pelos surdos. Há também os projetos que visam a capacitação e o treinamento de novos intérpretes para atuar nas igrejas, além do Clube de Jovens Surdos, que envolve aventuras radicais e crescimento pessoal, social, profissional e espiritual, e os pequenos grupos que reúnem surdos e intérpretes.
Isso mostra que a igreja não está alheia à realidade dos surdos. Porém, existem possibilidades que ainda podem ser exploradas a fim de desenvolvermos um ministério de Libras na igreja local como apoio ou complemento aos demais projetos de evangelismo para surdos. Nesse sentido, podem ser desenvolvidos projetos visando preparar e equipar pessoas para evangelizar a comunidade surda e tornar o ambiente da igreja mais acessível para eles, buscando envolvê-los.
A igreja precisa ser capaz não apenas de acolher os surdos em dias de culto ou eventos especiais, mas também de guiá-los, sob o amor de Jesus e o poder do Espírito Santo, à eternidade.
FLÁVIO JÚNIOR FERREIRA ALEXANDRE, graduado em Letras e especialista em Libras, é professor da rede municipal de Campinas (SP), onde frequenta a Igreja do Jardim Yeda