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O criar na criação

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Um convite para um olhar mais literário do texto bíblico na busca de extrair o seu conteúdo primário.

Pr. Edson Nunes*

O relato de Gênesis 1:1 – 2:3 guarda uma série de características importantes que serão tratadas em uma série de artigos, começando por esse. Muitos estudaram e estudam esses versos em busca de respostas, mas, infelizmente, na maior parte do tempo se perde a beleza de estudar o texto pelo que ele é: um texto. Isso não significa ignorar as perguntas e repostas normalmente trabalhadas por aqueles que acreditam na Criação, mas olhar o texto com um olhar mais literário e buscar, em sua forma, extrair seu conteúdo primário.

A estrutura do texto é bem simples e começa com uma introdução que apresenta o personagem principal do texto: Deus. Deus não é apresentado de maneira tradicional, já que não há nenhuma descrição que lhe acompanhe, nem uma biografia. Diferente de outros relatos mesopotâmicos, não há batalhas entre deuses, nem o sangue desses deuses é usado na criação de algo. A descrição inicial de Deus é baseada em uma ação: criar.

Essa narrativa abarcante e generalizada dos atos criativos divinos começa com limites de tempo (no princípio) e de espaço (céus e terra), e o que vai conectar essas duas dimensões é o verbo בּרא (br’). Para compreender o verbo em questão, de fato, é preciso deixar de lado a teologia, já que o entendimento dele é geralmente conectado ao conceito doutrinário de ex nihilo, ou seja, uma criação “do nada”, antes de haver matéria.

O foco aqui não é discutir quando a compreensão de uma criação material a partir da não-matéria começou; se no período intertestamentário (antes do Novo Testamento) como uma resposta ao judaísmo helenizado, ou se no período dos apóstolos, por causa de textos como Hebreus 11:1-3 e Romanos 4:17, ou mesmo se posteriormente, como uma resposta ao gnosticismo, fruto do platonismo. Esta seria uma discussão muito extensa, até. A ideia é entender a palavra dentro do contexto bíblico e, por isso, é interessante notar como esse verbo “criar” é usado ao longo da Bíblia, especificamente no Antigo Testamento (AT).

A origem de br’ é incerta, já que parece não haver uma raiz semítica equivalente. Há tentativas de ligar sua origem a um árabe antigo ou até a outra raiz hebraica, ambas com significado de “construir”. Br’ aparece 49 vezes no AT, e sempre com o mesmo sujeito: Deus. Como não há uma explicação satisfatória para seu significado – não há origem etimológica comprovada – o ideal é ver como e onde o verbo aparece, especialmente nos textos onde ele aparece em paralelo com outros verbos.

Por exemplo, br’ aparece em uma quantidade razoável de textos em paralelo com o verbo עשה (‘śh), que significa “fazer, criar, elaborar, produzir, fabricar”. Esse verbo, por sua vez, aparece em diversos contextos tendo o homem como sujeito, e em ações que indicam manipulação da matéria. De fato, ‘śh é o verbo que mais aparece para falar da criação divina.

Talvez o texto de Isaías 45:18 ajude a entender melhor a relação entre de br’ com os outros verbos:

כִּ֣י כֹ֣ה אָֽמַר־יְ֠הוָה בּוֹרֵ֨א הַשָּׁמַ֜יִם

ה֣וּא הָאֱלֹהִ֗ים יֹצֵ֨ר הָאָ֤רֶץ וְעֹשָׂהּ֙

ה֣וּא כֽוֹנְנָ֔הּ לֹא־תֹ֥הוּ

בְרָאָ֖הּ לָשֶׁ֣בֶת יְצָרָ֑הּ

אֲנִ֥י יְהוָ֖ה וְאֵ֥ין עֽוֹד׃

Pois assim diz o SENHOR, criador dos céus

Ele é o Deus que moldou a terra e a fez

Ele a estabeleceu, não um deserto

Criou-a para habitação, moldou-a

Eu Sou o SENHOR e não há outro.[i]

Em negrito estão as ocorrências da raiz br’. Grifadas estão as ocorrências de outros verbos relacionados a criação. Na verdade, são três deles, sendo que um, יצר (yṣr ) que significa “moldar, dar forma ou formar”, foi usado duas vezes. Os outros dois são o já mencionado, ‘śh e kûn (כּוּן), que significa “estabelecer, preparar, fundar, criar”. O que uso de br’ em paralelo com esses verbos revela? Certamente a complexidade da ação divina de criar, como se br’ fosse um multifacetado verbo, que, de certa maneira, resume a ideia de todos os outros verbos, mas em nenhum de seus paralelos expressa a ideia de ex nihilo.

Em suas ocorrências sozinho, br’ é usado em contextos diversos. A maior parte em referência direta ao que aparece criado em Gênesis 1 (céus e terra, homem e mulher, etc), mas algumas outras em referência a coisas já existentes, ou melhor, que não foram criadas ex nihilo (Malaquias 2:10 (povo); Isaías 43:10 (Israel); Isaías 54:16 (ferreiro e assolador) e Salmos 51:10 (coração)). Por fim, uma parcela de textos no qual esse “criar”, do qual somente Deus é o sujeito, aparece relacionado a coisas novas, renovadas, recriadas, como “novos céus e nova terra” (Isaías 65:17-18, etc).

Talvez a evidência mais concreta de que br’ não evoca uma criação do nada seja o verbo usado no terceiro dia da criação: “seja vista a porção seca” (Gênesis 1:9). A terra que em Gênesis 1:2 estava coberta por água, é agora chamada a ser vista, ou seja, não há, no terceiro dia, uma criação material ex nihilo.

O que tudo isso significa? Que br’ não é uma evidência de que Deus cria a Terra em um contexto imaterial, mas que a criação divina é complexa e envolve diversas ações das quais br’ é uma espécie de resumo. A complexidade e diversidade de br’ reforça o seu sujeito único, Deus, não por uma relação imaterial, mas pelo poder com que Ele, e somente Ele, pode criar.

De qualquer forma, o que acontece na criação continua sendo uma prova de fé em um Deus Todo-Poderoso, como diz Paulo: “Pela fé entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem” (Hebreus 11:3).

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*Possui graduação em Teologia e Letras pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP), especialização em Teologia Bíblica também pelo UNASP e mestrado em Letras (Estudos Judaicos) na Universidade de São Paulo (USP). Atuou como pastor na Associação Paulistana da IASD auxiliando nas seguintes comunidades: Beth B’nei Tsion (Templo Judaico-Adventista), Nova Semente e Homechurch de Perdizes. Atualmente é professor de ensino superior do UNASP, doutorando em Letras (Estudos Judaicos) na USP e coautor do site www.terceiramargemdorio.org. É casado com Vanessa desde 2001 e pai de dois meninos, Daniel e Yossef.

Bibliografia:

ANTUNES, Davi Evandro. Uma breve análise do verbo בּרא: como entender a criação em Gênesis 1:1. Trabalho de Conclusão de Curso. (Bacharel em Teologia). Unasp, Engenheiro Coelho, 2016.

BERGMAN, J.; et al. “בּרא”. In: BOTTERWECK, Johannes; RINGGREN, Helmer; FABRY, Heinz-Joseph. Theological Dictionary of the Old Testament. Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans Publishing Company, 1979.

DOUKHAN, Jacques B. Genesis. Nampa, ID: Pacific Press, 2016. [Seventh-day Adventist International Bible Commentary]

_____________. Response to John H. Walton at the Adventist Forum Conference. 2011. Disponível em: <https://spectrummagazine.org/article/jacques-doukhan/2011/09/12/response-john-h-walton-adventist-forum-conference>. Acesso: Maio 2017.

EVEN-SHOSHAN, Abraham. A New Concordance of the Old Testament: using the Hebrew and Aramaic text. Jerusalem: Kiryat Sefer Publishing House, 1989.

KOEHLER, Ludwig; BAUMGARTNER, Walter. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament. Leiden: Brill, 2000.

TSUMURA, David Toshio. “The doctrine of Creation ex nihilo and the translation of tohû wabohû”. In: MORIYA, Akio; HATA, Gohei (eds.). Pentateuchal Traditions in the Late Second Temple Period. Leiden: Brill, 2012. (Supplements ot the Journal for the Study of Judaism, vol. 158)

TURNER, Laurence A. Genesis. Sheffield: Sheffield Phoenix Press, 2009. [Readings: a New Biblical Commentary]

WALTON, John H. Genesis 1 as Ancient Cosmology. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2011.

[i] Tradução e versificação própria. Todos os outros textos são citação da ARA.

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