Ajustando nossa sensibilidade apocalíptica em tempos de crise de coronavírus
Declarada pandemia em 11 de março pela Organização Mundial da Saúde e mais conhecida como coronavírus, a Covid-19 logo sequestrou as manchetes dos principais jornais do mundo. O surto que teve início no mercado de Wuhan, na China, rapidamente se espalhou por países da Ásia, Europa, do Oriente Médio e das Américas. Durante semanas, o assunto principal nos noticiários tem sido sobre o vírus e seus efeitos na saúde da sociedade, no comércio e na economia mundial.
Temerosos pelo risco de contaminação, diversos governos fecharam suas fronteiras, cancelando eventos e suplicando que as pessoas permaneçam em casa e limitem sua exposição a lugares públicos. O prejuízo financeiro provocado pela paralização do comércio e do setor industrial, agregado ao alarmismo alimentado pelas mídias, foi capaz de “derreter” as bolsas de valores das principais economias mundiais, levando, inclusive, o Índice Bovespa a cair mais de 50% em poucas semanas. Temendo que a situação tome proporções apocalípticas, milhões de pessoas correram aos mercados em busca de suprimentos. Movidos pelo medo de contaminação, muitos deixaram de sair, passear e interagir socialmente, optando pela privacidade e reclusão de seu lar. Outros foram forçados a isso.
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Este cenário preocupante tem levado alguns fiéis a procurar entender o porquê desses eventos e o papel que isso poderia desempenhar no cumprimento das profecias sobre o fim. Como adventistas do sétimo dia, temos um grande interesse em eventos de proporções globais e de significado escatológico. Muitos têm perguntado: Essa pandemia é um dos sinais dos tempos? Afinal de contas, Jesus alertou que “haverá fomes, e pestes, e terremotos, em vários lugares” (Mt 24:7, ARC). Ou devemos interpretar a Covid-19 como um castigo de Deus pela pecaminosidade humana? Essas são apenas algumas das várias conjecturas que surgiram nas redes sociais durante os últimos meses. Afloraram também textos de Ellen White procurando explicar o papel das pandemias no palco escatológico ou identificando o autor por trás de toda essa calamidade.
Considerando que somos um movimento profético que constantemente busca se manter atento ao cumprimento da profecia, é de suma importância analisarmos como a Bíblia descreve esses fenômenos e que explicação ela dá para sua ocorrência, antes que cheguemos a conclusões precipitadas ou alarmistas. Como veremos, pestes, pragas e moléstias relatadas na Bíblia nem sempre ocorrem pelos mesmos motivos ou agentes.
SATANÁS E JÓ
Talvez o exemplo mais emblemático de Satanás como um agente provocador de doenças esteja no livro que registra a experiência de Jó. Ali é relatado que esse “homem íntegro e reto, que temia a Deus e se desviava do mal” (Jó 1:1), foi acometido de uma enfermidade assustadora. Com “tumores malignos, desde a planta do pé até ao alto da cabeça” (2:7), Jó testemunhou vermes consumindo sua pele apodrecida (7:5). Em lamento, ele descreveu: “Enegrecida se me cai a pele, e os meus ossos queimam em febre” (30:30). Quando buscava alívio no sono, era angustiado por pesadelos (7:4), e assim sua tortura se sucedeu noite e dia. Embora seja complicado diagnosticarmos corretamente a doença que sobreveio ao patriarca, pois o termo usado para descrevê-la é empregado para se referir a uma categoria ampla de problemas cutâneos (Êx 9:9; Lv 13:20; 2Rs 20:7), dificilmente equipararíamos seu quadro à gripe que está afligindo a maioria das vítimas do coronavírus.
O autor do livro de Jó deixou claro que todo esse tormento foi provocado por Satanás (2:7). Esse ser angelical é retratado não apenas como o acusador de Jó, mas também como uma entidade sobrenatural que recebeu liberdade para executar seus planos malévolos, manipulando e controlando, dentro de certos limites, os fenômenos da natureza. Assim, mesmo sendo um ser criado, ele foi capaz de provocar desastres naturais (1:19), moléstias (2:7) e até imitar atos sobrenaturais que somente o Criador poderia executar (1:16; cf. 1Rs 18:20-40).
Muito se poderia dizer sobre a concessão dessa liberdade e a existência do mal. O ponto importante a ressaltar é que tudo o que Satanás faz está dentro dos limites estabelecidos por Deus. A exemplo dos ventos de destruição mencionados no Apocalipse (7:1), que são contidos por seres angelicais para que não danifiquem aqueles que estão sob a proteção divina, Satanás é retratado no livro de Jó como um ser poderoso e maligno que está constantemente sob a supervisão e controle divinos. Longe de ser um arqui-inimigo coeterno, uma metáfora da perversidade humana ou a representação de uma força impessoal malévola, ele é um ser angelical, criado em um ambiente de perfeição, mas que, por razões desconhecidas, se corrompeu e, desde então, tem atacado o caráter e a pessoa de Deus. Como se pode notar, ele não é um ser recluso à esfera espiritual. Satanás tem capacidade de manipular a realidade física, provocando desastres, criando doenças e operando sinais e maravilhas.
Em acordo com o texto bíblico, Ellen White afirma que Satanás “opera por meio dos elementos a fim de recolher sua colheita de almas desprevenidas. Estudou os segredos dos laboratórios da natureza e emprega todo o seu poder para dirigir os elementos tanto quanto Deus o permite. Quando lhe foi permitido afligir Jó, quão rapidamente rebanhos e gado, servos, casas, filhos, foram assolados, seguindo-se em um momento uma desgraça a outra!” (O Grande Conflito, p. 589). Esse poder não se manifestou somente em tempos bíblicos. Perto do fim dos tempos, Satanás “trará moléstias e desgraças até que cidades populosas se reduzam à ruína e desolação. Mesmo agora ele está em atividade. Nos acidentes e calamidades no mar e em terra, nos grandes incêndios, nos violentos furacões e terríveis saraivadas, nas tempestades, inundações, ciclones, ressacas e terremotos, em toda parte e sob milhares de formas, Satanás está exercendo seu poder. Ele destrói a seara que está a amadurar, e seguem-se fome, angústia. Comunica ao ar infecção mortal, e milhares perecem pela pestilência” (p. 589-590).
Conforme Ellen White anteviu, “estas visitações devem tornar-se mais e mais frequentes e desastrosas” (p. 590). No entanto, isso só ocorrerá porque Deus retirará Seu braço protetor e permitirá que Satanás cumpra seus propósitos. “O mundo cristão mostrou desdém pela lei de Jeová; e o Senhor fará exatamente o que declarou que faria: retirará Suas bênçãos da Terra, removendo Seu cuidado protetor dos que se estão rebelando contra a Sua lei, e ensinando e forçando outros a fazer o mesmo. Satanás exerce domínio sobre todos os que Deus não guarda especialmente” (p. 589).
A última declaração, no entanto, não deve nos levar a concluir, equivocadamente, que a contaminação do coronavírus seja um indicador daqueles que estão sendo infiéis para com Deus. Da mesma forma que Deus permite que fenômenos naturais como o sol e a chuva alcancem justos e ímpios, Ele também permite que a doença siga seu caminho natural de infeção e contaminação sobre todos. Essa foi a mentalidade de Jó ao contestar a proposta de sua esposa: “Temos recebido o bem de Deus e não receberíamos também o mal?” (Jó 2:10).
Tendo dito isso, devemos reconhecer que a noção de um anjo caído capaz de provocar tempestades, terremotos e epidemias é extremamente objetável à mentalidade vigente em nossa sociedade tecnológica e científica. Por séculos, temos sido gradualmente condicionados a pensar de maneira materialista (ou cientificista), excluindo qualquer envolvimento ou manifestação sobrenatural. Atualmente, doenças e epidemias são tidas como resultantes da contaminação de micro-organismos no corpo.
Por isso, não se fala mais em abandonar o pecado, aceitar o senhorio de Cristo e confiar em Deus, como ocorria nos dias de Moisés, Jeremias ou Jesus. Em vez disso, somos orientados a sempre lavar as mãos, evitar tossir ou espirrar na presença de outras pessoas, e até não cumprimentar nem abraçar conhecidos. Pode surpreender alguns, mas esta visão científica dos mecanismos e leis que estão em ação no Universo não exclui necessariamente a crença em uma realidade sobrenatural que causa fenômenos naturais, sejam eles benéficos ou prejudiciais. Portanto, é perfeitamente coerente vivermos de maneira a obedecer às leis da higiene e da saúde, mas reconhecendo que existem forças além de nossa realidade que lutam contra nosso bem-estar e nossa salvação.
DEUS E O CASTIGO PELO PECADO
Talvez a parte desta reflexão que alguns achem mais difícil de assimilar seja a ideia de que, além de permitir o mal, em certos momentos Deus foi diretamente responsável por infligir doenças e pestes. Essa constatação pode levar alguns a perguntar: Como um Deus que é amor poderia provocar dor e sofrimento às Suas criaturas? Não seria isso absolutamente incompatível com a alegação cristã de que há um Criador maravilhoso que deseja nosso bem maior? Respondendo de forma sucinta, essas ideias não são incompatíveis. No entanto, precisamos ver alguns casos na Bíblia para entendermos como elas se correlacionam.
Existem vários exemplos bíblicos que poderíamos mencionar, mas, devido à limitação de espaço, vamos nos concentrar em dois. O primeiro se encontra no livro de Êxodo, onde é relatado que Deus enviou dez pragas sobre o Egito, das quais duas se encaixam na categoria de doenças: a peste nos animais (Êx 9:3, 6) e as úlceras (v. 10). Aqui vemos Deus enviando destruição e calamidades sobre uma nação pagã, politeísta e que havia rejeitado a ordem de deixar o povo de Deus sair em liberdade.
Cada praga que se sucedia crescia em intensidade e destruição. Como diz o próprio texto bíblico, as dez pragas serviram como “grandes manifestações de julgamento” (Êx 6:6; 7:4) pela desobediência explícita e contínua. Simultaneamente, cada praga foi um ato de misericórdia, conscientizando o faraó de seu estado endurecido e dando-lhe a oportunidade de se submeter à vontade divina. De igual forma, as pragas também serviram de recado à religião egípcia de que seus deuses não se comparavam em poder e autoridade ao Deus de Israel, e que somente Ele controla o mundo natural e sobrenatural.
No segundo caso que veremos, Deus não infligiu uma doença sobre um povo pagão, mas sobre Seu próprio povo. Em 2 Samuel 24:15-17 é relatado que Deus enviou uma peste sobre os israelitas durante três dias, em que 70 mil homens sucumbiram. Esse ato de castigo veio em consequência da iniciativa do rei Davi de fazer um censo nacional. Embora não fosse proibido por Deus, o censo que ele pretendia fazer era de natureza militar, movido pelo desejo de tornar o país semelhante aos países vizinhos, exaltando a grandeza da nação e de seu rei, e fortalecendo a confiança em seu próprio poderio.
Esse censo, que recebeu o apoio do povo, levaria a um afastamento de Deus, abrindo as portas para a tentação e para que Israel, em tempos de guerra, deixasse de confiar em Deus e passasse a confiar no elemento humano. A exemplo de outros momentos em que Israel se afastou da aliança com Deus, o castigo divino serviu para despertá-lo de sua condição de apostasia e reconduzi-lo a um relacionamento de confiança e obediência (cf. Dt 28:35). Mais uma vez, as moléstias foram um esforço pedagógico e misericordioso da parte de Deus para afastar Seu povo do pecado e reconduzi-lo à salvação. Ao assim fazer, o Senhor estava permitindo que um mal sobreviesse ao povo e que, por meio dele, um bem maior fosse alcançado.
Dessa forma, tanto no caso das pragas do Egito como na peste sobre Israel, a justiça de Deus se mesclou com Sua misericórdia ao tentar despertar o ser humano para sua condição de rebelião e pecaminosidade, na esperança de que entendesse os efeitos de sua atitude e mudasse sua trajetória obstinada antes que fosse tarde demais. Sob essa perspectiva, quando analisamos a dor pela qual passamos em nossa existência e a comparamos com o que Deus deseja realizar em nós, devemos ser capazes de reconhecer que Seus planos são melhores que os nossos.
O filósofo Richard Swinburne, em sua obra Providence and the Problem of Evil (Oxford University Press, 1998), argumenta que, por ser mais sábio, Deus é perfeitamente justificado em permitir o mal se este produzir um bem maior em nós, individualmente ou coletivamente. Por meio da dor, Deus pode alcançar bens e benefícios que não seriam possíveis de outra forma. Tendo em vista o conflito cósmico entre Cristo e Satanás, Paulo nos encoraja a olhar para além da dor e contemplar a recompensa eterna: “Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós” (Rm 8:18).
O SER HUMANO E A DESOBEDIÊNCIA
Também existem casos de doença que são provocados pela ação humana ou por sua desobediência às leis de saúde. Um exemplo é o consumo de alimentos impróprios ou bebidas prejudiciais
(Lv 11; Pv 23:30-33). Às vezes, um hábito pecaminoso pode, em longo prazo, gerar um quadro crônico, como parece ter sido o caso do paralítico de Betesda (Jo 5:8, 14). Graças à luz que hoje temos, por meio dos escritos inspirados, somos conscientes de que a higiene pessoal, o cuidado e a limpeza do lar, a ventilação dos aposentos, o consumo abundante de água, frutas, legumes e alimentos integrais, o exercício físico, bem como os cuidados que devemos ter com pessoas acamadas, são alguns dos vários aspectos elementares que precisam ser cultivados, caso desejemos afastar a doença e manter um corpo saudável. Até a questão das aglomerações em grandes cidades e o risco de contaminação de doenças era uma preocupação manifestada por Ellen White há mais de cem anos.
Em casos como os que estamos vendo, ninguém deve ser culpado a não ser o próprio ser humano. Seja a doença causada por problemas genéticos ou comportamentais, nem Deus nem Satanás devem ser culpabilizados. O ser humano tem a capacidade de provocar destruição a si e aos que estão ao seu redor. O descumprimento das leis de saúde durante séculos tem deixado sua marca em nossa sociedade, levando a humanidade a diminuir sua força, energia, saúde e inteligência.
O CENÁRIO ESCATOLÓGICO
Ao olhar para o futuro, Jesus Cristo previu que coisas como estas se tornariam mais comuns antes de Sua segunda vinda. Ele Se referiu a eles como “sinais” de que o tempo de Seu retorno estaria se aproximando. Esses sinais não deveriam nos assustar nem alarmar: “Vede, não vos assusteis, porque é necessário assim acontecer, mas ainda não é o fim” (Mt 24:7). Esses fenômenos não devem surpreender o povo de Deus, mas servem como confirmação de que a palavra do Senhor é verdadeira e fiel. De igual modo, ao cumprirmos nossa missão profética de preparar o mundo para a volta de Jesus, nosso objetivo ao chamar a atenção das pessoas para esses desastres naturais não deve ser o de criar alarmismo, mas mostrar que ainda não é o fim e que este é o momento para se posicionar ao lado de Cristo.
Não devemos interpretar os sinais da vinda de Cristo como eventos pontuais, mas acontecimentos que se estendem até a segunda vinda de Cristo, criando uma janela de oportunidade para que “nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento” (2Pe 3:9). Marvin Moore nota corretamente que, quando se trata dos sinais do fim dos tempos (fomes, guerras, pestes), não devemos interpretá-los como eventos, mas tendências: “Creio que devemos ser muito cautelosos ao interpretarmos eventos específicos como sendo o cumprimento de uma profecia bíblica específica. Tendências são indicadores mais eficientes do queeventos singulares no cumprimento da profecia bíblica” (The Crisis of the End Time [Pacific Press, 1992], p. 14).
Por isso, não podemos ver a pandemia do coronavírus como o cumprimento principal da profecia de Mateus 24:7. Ela faz parte de uma sequência de sinais que estão alertando a sociedade de que a janela da oportunidade está se fechando e que este é o momento ideal para nos posicionarmos ao lado de Cristo no conflito cósmico. Momentos de epidemia como o que estamos vivenciando podem oferecer uma oportunidade única para alcançar pessoas que, em circunstâncias normais, nunca dariam ouvidos ao convite do evangelho eterno.
O risco de contaminação que muitos enfrentam se tornou um indicador da fragilidade de nossa sociedade. O orgulho do sucesso e dos avanços que o brilhantismo humano alcançou é jogado na lama da incerteza e do medo. Quando se trata de infecção epidemiológica, as barreiras que o ser humano criou caem por terra. Não existe mais distinção entre brancos, negros, ricos, pobres, cultos, iletrados, europeus, latinos ou africanos. Todos podem ser infectados! Por isso, povos que antes eram antagonistas, em nome da sobrevivência, estão se unindo para combater uma ameaça comum, mostrando que, em momentos de crise, inimigos podem se tornar colaboradores.
Não estou dizendo que esse é o fim. Mas a experiência que estamos vivendo pode servir de alerta e nos ajudar a entender melhor os cenários que se estabelecerão quando finalmente o mundo estiver maduro para a batalha final. Continuemos atentos e sóbrios enquanto a gloriosa pequena nuvem da comitiva de Cristo não aparece.
GLAUBER S. ARAÚJO, pastor e doutorando em Teologia, é editor de livros na CPB