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Uma profetisa entre nós

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Uma jovem com cerca de 20 anos, de saúde frágil e pouco estudo formal, e um experiente capitão da marinha e astrônomo amador estão no mesmo recinto, numa reunião de oração. De repente, ela entra em transe. Mais uma visão. Em sua excessiva cautela, o capitão permanece cético. Como das outras vezes, ele se recusa a aceitar aquela manifestação como vinda de Deus. A franzina visionária começa a falar. Com riqueza de detalhes, descreve planetas e estrelas. A descrença do velho comandante se desfaz à medida que a visão é relatada. Ele identifica na descrição um conhecimento muito superior ao que encontrou nos livros. Impressionado, pergunta à jovem, já consciente, se alguma vez havia estudado astronomia. A resposta é “não”. Então, plenamente convencido e com entusiasmo, o capitão reconhece: “Isto procede do Senhor!” (Vida e Ensinos, p. 88, 89).

Foi assim que José Bates, um dos cofundadores do adventismo, rendeu-se à convicção de que Ellen Gould White possuía o dom de profecia. Sua aceitação ilustra a experiência dos primeiros adventistas, que cresceram gradativamente na compreensão daquele dom, a ponto de elaborarem uma teologia sólida sobre o tema.

No entanto, isso não ocorreu da noite para o dia. Em seu livro Accepting Ellen White (Pacific Press, 2017), Theodore N. Levterov, diretor do Centro de Pesquisas Ellen G. White da Universidade de Loma Linda, na Califórnia (EUA), divide esse processo em quatro fases: aceitação, defesa, afirmação e refinamento.

FASE DA ACEITAÇÃO (1844-1850)

Em dezembro de 1844, Ellen White teve sua primeira visão, a do “caminho estreito” (Primeiros Escritos, p. 13-24). Essa revelação foi destinada especialmente a confortar e encorajar os que haviam se desiludido com o fato de Jesus não ter voltado em 22 de outubro daquele ano.

Apesar da rejeição de alguns, essa e outras visões foram recebidas com certa facilidade por muitos mileritas como mensagens proféticas genuínas. Essa pronta aceitação se explica, em grande parte, pelo contexto histórico e religioso da época. Os Estados Unidos do século 19 eram um terreno fértil a manifestações carismáticas. Aflorava uma espiritualidade exacerbada que predispunha os cristãos de diferentes denominações a desejar uma experiência sobrenatural com Deus, seguida de visões, sonhos, curas e milagres.

Portanto, era comum o aparecimento de pessoas alegando ter recebido revelações, mesmo entre os mileritas, a exemplo de William E. Foy (1818-1893), que sustentava ter tido visões no início dos anos 1840. Além disso, a tradição cristã da qual os primeiros adventistas eram herdeiros acreditava na continuidade dos dons espirituais até antes da volta de Jesus. Embora esse ambiente tenha favorecido a aceitação de Ellen White como profetisa, acabou também significando um obstáculo, pois exigia que fossem apresentadas credenciais que a distinguissem dos demais pretensos profetas.

Diante dessa necessidade, os que defendiam sua inspiração foram levados a sistematizar as evidências desse dom em quatro argumentos básicos: (1) a Bíblia prevê a manifestação dos dons (incluindo o dom de profecia) nos “últimos dias” (Jl 2:28-30; At 2:17, 20); (2) Ellen White falava exatamente de acordo com as Escrituras (Is 8:20); (3) seu ministério teve um efeito positivo no crescimento do movimento adventista e na edificação de muitos cristãos (Mt 7:15-20); e (4) a previsão de que surgiriam falsos profetas no tempo do fim reforça a possibilidade de existirem verdadeiros profetas modernos (Mt 24:24).

Esses parâmetros faziam com que Ellen White fosse considerada uma autêntica profetisa – ainda que ela mesma nunca tenha reivindicado essa distinção, preferindo a designação de “mensageira do Senhor” (Mensagens Escolhidas, v. 1, p. 32).

EM DEFESA DO DOM (1851-1862)

Nos anos seguintes, novos desafios impulsionaram os adventistas a definir em termos mais claros o papel de Ellen White. Em 1853, por exemplo, surgiram os primeiros dissidentes entre os adventistas sabatistas. O “Grupo Mensageiro”, como ficou conhecido, fazia ataques a Ellen White na revista Messenger of Truth (Mensageiro da Verdade). Associado a esse grupo, havia os “adventistas da era vindoura”, que entendiam o milênio como um novo tempo de graça e que também se voltaram contra as visões da profetisa. Eles acusavam os adventistas de tomar as revelações de Ellen White como uma regra de fé adicional à Bíblia e uma prova de comunhão. Eles também negavam a possibilidade de uma mulher exercer o ministério profético.

Em face dessas acusações, Tiago White e os demais adventistas guardadores do sábado reforçaram de forma oral e escrita a convicção que tinham de que a Bíblia constitui o único padrão de fé e prática, e de que os dons espirituais, incluindo o profético, não tinham o objetivo de substituir as Escrituras. Ellen White confirmou essa ideia ao escrever que as “visões nos últimos dias” serviam para “corrigir” os que se desviavam da verdade bíblica (A Sketch of the Christian Experience and Views of Ellen G. White, p. 64).

A fim de reforçar a primazia da Bíblia, Tiago decidiu não publicar as visões da esposa na Review and Herald, principal periódico dos adventistas na época. Posteriormente, porém, essa atitude foi reprovada por alguns que a interpretaram como falta de coragem para assumir publicamente a crença no ministério profético de Ellen White. De todo modo, a decisão teve um impacto negativo ao arrefecer o interesse do público no conteúdo das visões.

Essa situação motivou os participantes de uma assembleia geral de adventistas em 1855 a nomear uma comissão para ressaltar a importância e função dos dons espirituais, especialmente do dom de profecia. A despeito dessa medida, ainda levaria alguns anos até que os adventistas abandonassem o excesso de cautela em vista do preconceito externo e assumissem uma atitude mais intencional na divulgação das mensagens da profetisa.

Quanto à acusação de que os sabatistas tinham a aceitação de Ellen White como uma prova de comunhão, Tiago, a esposa e outros líderes negavam ter vinculado isso à inclusão de novos membros na igreja. Mais tarde, em 1861, Uriah Smith fez distinção entre crer no dom de profecia e aceitar Ellen White como profetisa. Para ele, o primeiro constituía, sim, um critério de comunhão, mas o último não. Entretanto, esperava-se que, uma vez que conhecesse as evidências, a pessoa aceitasse o dom de Ellen White como genuíno. A partir de então, a oposição ao ministério dela passou a ser vista como uma ameaça à unidade da igreja. Mesmo assim, havia tolerância para com aqueles que lutavam com suas dúvidas.

Com relação ao fato de Ellen White ser uma mulher, o texto de Joel 2, que menciona “filhos” e “filhas” recebendo o dom de profecia, e os exemplos de profetisas na Bíblia eram frequentemente apresentados para rebater as acusações dos que argumentavam que o ofício profético estava restrito ao gênero masculino.

Dessa forma, com o tempo, a aceitação do dom de profecia em Ellen White foi ganhando consistência teológica e contornos cada vez mais bem definidos.

AMADURECIMENTO E AFIRMAÇÃO (1863-1881)

Nos anos seguintes, os problemas envolvendo a aceitação de Ellen White continuaram e, embora se concentrassem basicamente nas mesmas objeções de sempre, trouxeram novas nuances. Acusava-se os adventistas de omitir escritos mais antigos em que ela supostamente teria cometido erros doutrinários, e sustentava-se que seu dom não continha nada de extraordinário nem sobrenatural.

Em resposta a essas críticas, foi explicado que, de fato, partes dos primeiros escritos de Ellen White não foram incluídas em publicações posteriores, mas não com o fim de esconder supostas inconsistências doutrinárias, e sim por razões meramente editoriais. Além disso, os trechos suprimidos não alteravam o sentido geral das visões e mensagens relatadas.

Para contrapor à alegação de que o ministério profético dela não possuía características sobrenaturais, os adventistas começaram a explorar o aspecto extraordinário de suas visões. Eram ressaltadas, por exemplo, (1) as condições físicas anormais apresentadas por ela enquanto estava em visão; (2) as revelações de fatos e informações desconhecidos para ela; e (3) a prolongada e incontrolável duração de suas visões. Além desses fatores, havia também o elemento confirmatório das numerosas testemunhas oculares que presenciavam a maior parte de suas revelações.

Estando já amadurecida a crença e a argumentação em sua defesa, entre as décadas de 1860 e 1870, os adventistas do sétimo dia já não hesitavam em declarar abertamente que Ellen White era portadora do autêntico dom de profecia. Nessa época, Uriah Smith usou pela primeira vez uma abordagem apologética para responder às ­acusações levantadas pela obra The Visions of E. G. White, Not of God (Visões de E. G. White, Não de Deus), de B. F. Snook e William H. Brinkerhoff. Além disso, a sede mundial adventista emitiu resoluções confirmando a crença da denominação no ministério de Ellen White.

Em 1872, quando se formulou a primeira declaração de crenças adventistas do sétimo dia, os dons espirituais, incluindo o de profecia, foram reconhecidos como elementos inseparáveis do corpo de doutrinas da igreja.

REFINANDO A COMPREENSÃO (1882-1889)

Nas últimas décadas do século 19, o tema do dom profético de Ellen White continuou a gerar controvérsias dentro e fora do adventismo, sendo alvo de fortes ataques, como os do ex-pastor adventista Dudley M. Canright (1840-1919), cujas obras servem até hoje como referência para os críticos. Sua principal acusação era de que Ellen White teria cometido plágio em seus escritos. A resposta da igreja tem sido que citar outros autores sem indicar a fonte foi prática comum dos profetas canônicos e entre os comentaristas bíblicos até meados do século 19.

Ao longo do século 20, novos críticos surgiram, mas suas contestações eram basicamente a repetição do que seus antecessores já haviam levantado, como mostrou Francis D. Nichol no livro Ellen White e Seus Críticos, recentemente lançado em português pela CPB. A constante discussão sobre o assunto e a necessidade de apresentar argumentos sólidos levaram a denominação e refinar sua teologia dos dons espirituais e a ver a relação entre Ellen White e a Bíblia na perspectiva correta.

PROBLEMA ANTIGO, DESAFIO ATUAL

Embora as objeções do passado continuem sendo apresentadas, os desafios quanto à aceitação de Ellen White nos dias atuais apresentam matizes ligeiramente diferentes. Segundo Alberto Timm, diretor associado do Patrimônio Ellen G. White, em nossa sociedade pós-moderna, a abertura a novos conhecimentos, às experiências sobrenaturais e a ênfase no papel da mulher facilitam a apreciação do dom profético de Ellen White. Contudo, sua plena aceitação levaria a pessoa a um compromisso com a mensagem adventista, o que explica a relutância de muitos. “Já nos círculos adventistas”, completa o teólogo, “talvez o maior desafio seja a apatia das novas gerações provenientes de lares secularizados, em que a religião não passa de mais uma atividade social”.

Por sua vez, Hélio Carnassale, diretor do departamento de Espírito de Profecia da Divisão Sul-Americana, considera que a dificuldade em aceitar o dom profético de Ellen White seja, na maior parte das vezes, devida ao pouco (ou nenhum) conhecimento de sua vida e seus escritos. Carnassale acrescenta que “a maioria dos críticos pouco leu os livros de Ellen White ou pouco se envolveu com eles”. Outro fator que dificulta a aceitação é o desserviço prestado por aqueles que, equivocadamente, exaltam os escritos de Ellen White acima da Bíblia. “Isso gera rejeição e descrédito”, afirma Renato ­Stencel, diretor do Centro de Pesquisas Ellen G. White do Unasp, campus Engenheiro Coelho.

Tudo isso ressalta a importância de incentivar, na igreja e fora dela, a familiaridade com os escritos da pioneira adventista. Como na experiência do capitão Bates, conhecer a fundo a vida e a mensagem de Ellen White pode desfazer preconceitos e abrir caminho para a convicção.

EDUARDO RUEDA é pastor, mestre em Teologia e editor dos livros de Ellen White na CPB

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